Por Débora Hilgert*

(IN) OCORRÊNCIA DA RELAÇÃO DE CONSUMO

Este artigo se propõe a analisar os critérios para caracterizar um comerciante como destinatário final do serviço de transporte de carga, de modo que possa ser enquadrado como consumidor nesta relação “acessória” ao contrato de compra e venda de insumos (relação principal sobre a qual não incide a legislação consumerista).

Em um primeiro momento, é fundamental, para que possamos traçar um parâmetro de aplicabilidade para o Código do Consumidor, identificar uma relação de consumo. Para que haja relação jurídica de consumo, é necessária a presença de três elementos. O elemento subjetivo, que se refere aos sujeitos da relação: de um lado o consumidor; de outro, o fornecedor. O elemento objetivo, representado por aquilo que o fornecedor vai ao mercado oferecer aos consumidores: produtos e serviços. E, por último, o elemento teleológico ou finalístico, que consiste, em linhas gerais, na necessidade de que o adquirente do produto ou utilizador do serviço seja destinatário final da prestação.

Entretanto, se o termo destinatário final, por um lado, ajuda na definição de consumidor, por outro lado, em hipóteses como a dos comerciantes, que adquirem um serviço como destinatários finais, mas que usarão esse bem ou serviço como típico de produção, a expressão “destinatário final” dificulta esta caracterização.

Assim, este artigo se propõe a investigar se a relação jurídica acessória, qual seja, de transporte de mercadorias adquiridas por comerciantes, pode ou não ser enquadrada como uma relação de consumo, de modo que incidentes os benefícios legais da relação consumerista neste frete.

Em outras palavras, se busca definir se esta relação jurídica acessória – transporte dos insumos adquiridos pelo comerciante – se caracteriza como uma relação de consumo, de modo a fazer uma distinção com a relação jurídica estabelecida no contrato principal.

Pois bem, contratada uma empresa prestadora de serviço de transportes de mercadorias (de modo a possibilitar ao comerciante o exercício da sua atividade fonte de lucro no local desejado), não se trata de comerciante o qual emprega atividade que seja intermediária do lucro visado, mas sim serviço de transporte ofertado e contratado, sendo a transportadora fornecedora do serviço e o comerciante destinatário final da prestação deste serviço.

Deste modo, imperioso estabelecer o alcance da expressão destinatário final, que constitui o elemento teleológico dessa definição.

Existem atualmente duas correntes doutrinárias principais sobre a questão: os finalistas e os maximalistas.

Os finalistas defendem que somente o destinatário fático e econômico do bem pode ser caracterizado destinatário final do serviço, ficando excluídos os comerciantes.

Por sua vez, os maximalistas entendem que o conceito de destinatário final do bem é objetivo, atingindo todo o destinatário fático do serviço, não considerada a utilidade ou a finalidade desse ato econômico de consumo.

Até meados de 2004, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça seguia a teoria maximalista, já a Quarta Turma a finalista, quando então, por ocasião do julgamento do REsp nº 541.867/BA, o STJ consolidou entendimento centrado na teoria finalista, também conhecida como subjetiva.

Mais recentemente, em situações excepcionais, a jurisprudência do STJ passou a mitigar a teoria finalista nos casos em que mesmo que ausente a condição de destinatário final do bem, fosse constatada a vulnerabilidade do consumidor ante o fornecedor.

Logo, de acordo com o atual entendimento do STJ, em uma mesma situação, se um determinado comerciante for considerado vulnerável, na relação acessória de frete incidirá a legislação consumerista, por outro, não alegada e constatada esta vulnerabilidade, haverá a incidência do Código Civil/2002. Destaca-se que é fundamental que os advogados invoquem e sustentem esta vulnerabilidade para que a mesma possa vir a ser reconhecida.

Em que pese o atual entendimento do STJ, entendemos que o comerciante, seja pessoa física ou jurídica, que utiliza serviço de transporte como destinatário final, independentemente de sua vulnerabilidade, se a transportadora foi contratada para exercer um serviço – o de transportar mercadorias – caracteriza uma relação de consumo, mesmo no caso de ser uma obrigação acessória ao contrato principal de compra de mercadorias no qual não incide a legislação consumerista.

A questão tem gerado polêmica nos Tribunais Estaduais, e já são inúmeros os julgados em que  se adota a tese de que, em hipóteses como a ora analisada, incide a legislação consumerista, posição que nos parece mais equânime e menos subjetiva,  e que acreditamos deva continuar a ser defendida pelos advogados, para fins de que, com o constante número de recursos neste sentido,  o STJ venha a aclarar o entendimento sobre a definição de destinatário final através de critérios mais objetivos, trazendo maior segurança jurídica as partes e unificação de jurisprudência sobre este tema ainda tão controverso.